sexta-feira, 30 de abril de 2010

PARECEMOS COGUMELOS

Fotogenia micológica

Exposição de fotografia temática, no Clube de Ténis de Braga, da autoria de Guilherme Sanches

PARECEMOS COGUMELOS

Desde logo por sermos muitos e acumulados cada vez mais em numerosos e altivos casarios e estes se concentrarem em metrópoles cada vez mais extensas e ocupadoras de espaço natural.
Desde logo por nos vermos olhados de cima e parecermos todos de igual porte e aspecto, mesquinhos à medida que se ergue a tomada de vistas, depois minúsculos, insignificantes, desaparecidos.
Desde logo por termos na forma do cogumelo explosivo a nossa paradigmática ideia de bomba atómica. Mas também pela fragilidade de cartas de baralho com que nos abatem as tragédias naturais, os terramotos, os tsunamis, as avalanches, os deslizamentos, as enxurradas.
Parecemos cogumelos.
Uns, luminosos e confiantes, outros, tímidos e apagados. Todos perecíveis. Todos também resistentes à ideia de perecividade, tudo fazendo para adiar a hora de um desaparecimento ou anulação de vida, tudo fazendo para uma continuidade de aspecto e de memória. Uns fiados no seu habitat, outros fiados em si próprios, parecemos cogumelos: variados na forma e no conteúdo, variados na ocupação dos chãos, isolados ou agrupados, identificados e contextualizados.
Quem nos vir dirá de nós o que diz dos cogumelos: bonitos uns e agradáveis, feios outros e abomináveis, tudo com base em argumentos de forma, aspecto, tamanho, cheiro, localização. Seremos levados em linha de conta pelo préstimo que tivermos, coisa que mais depressa nos levará à extinção do que à permanência: sermos requintadamente saboreados parecer-nos-á um topo de excelência, sermos repudiados como venenosos e asquerosos será o rebaixamento desprezível. Sujeitos ao tempo e às intempéries, somos ainda mais sujeitos á recolecção e completamente sujeitados á biqueira de qualquer bota imprevidente ou maldosa.
Teremos o nosso tempo de fulgor e honra faremos a quem no-lo aumentar desmedidamente por meio de filme ou película impressionável, pintura ou esquisso, técnica de secagem ou de fixação.
Seremos tomados por tudo e por todos, pelo sujeito erecto e viril, pelo sujeito humilde e frágil, pelo sujeito exibicionista e fanfarrão, pelo sujeito dependente e parasitário, pelo par homo, pelo par hetero, pelo grupo protegido, pelo grupo indefeso, pelo grupo organizado, pelo grupo tresmalhado, pela multidão composta, pela turba caótica. Temos connosco toda a retórica das palavras e das imagens, toda a retórica dos odores, toda a retórica dos contactos.
É bem certo que somos inspiradores de muito imaginário: este marialva, aquele efeminado, este nu, aquele vestido, este encolhido, aquele desbundado, este natural, aquele produzido, este rei, aquele escravo, este macho, aquele fêmea. Minúsculos e invisíveis, extensos e apreensíveis, autónomos e dependentes, somos sempre de uma fragilidade absoluta. Classificáveis, somos estudados e apreciados, vistos pelo prisma da utilidade extrema e imprescindível, mas também denunciados como perturbadores e invasores.
Temos a nossa graça e a nossa desgraça por vezes em momentos muito próximos, outras vezes demoramos todo o ciclo de vida à espera de um reparo. Quando brilhamos na nossa singularidade, logo nos atiram aos ouvidos a utilidade imediata, ou os disparates do veneno ou o incómodo de não estarmos no lugar certo à hora certa.
Quando nos juntamos, dois, alguns ou muitos, milhares mesmo, logo nos trocam pelos encantos da vizinhança, ou do hospedeiro, ou do lugar, ou da nesga de território em que nos sustentamos.
Vale-nos quem nos ama, quem nos estuda a vida, quem nos guarda a memória. Vale-nos quem nos olha e nos deixa estar, quem nos favorece todo o tempo do mundo.

José Machado, 2010.