... E então no dia seguinte, no Domingo de manhã, lá fomos para Bemposta, para a casa dos sempre disponíveis Manuel e Laurentina. Íamos de barco ao outro lado apanhar espargos selvagens para o almoço.
Íamos, mas o relógio adiantou-se, e já não fomos. Em vez disso, um passeio rio acima, a ver as margens, à margem do Douro, entre o céu e o rio. Tanta coisa de ímpar beleza. Uma horita, e umas dezenas de fotografias. Escolhi esta, que carrega consigo uma lenda. Ora vejam e leiam:
“Perde-se a contagem na amnésia do tempo, o tempo distante em que esta lenda aconteceu, mas perdura e relembra-se com ternura, na memória das gerações que a fantasiam.”
LENDA DA FREIRA E DO MONGE
Cresceu nas veredas pedregosas das margens do rio que a viu nascer. Corria ligeira pelos trilhos que conhecia de cor, levando a merenda ao pai, quando este guardava as ovelhas que eram o sustento da casa. Tinha uma figura esguia, os olhos cor de musgo novo e chamava-se Mariel.
Quando a Fé a chamou, respondeu ao apelo do convento que via diariamente da sua modesta casa, e que ficava no alto do monte onde tantas vezes passava com o gado.
Ali recolheu a sua juventude de noviça, dedicando todo o seu ser à oração e à partilha dos trabalhos conventuais.
Também de cor, conhecia as plantas e os frutos silvestres que toda a vida fizeram parte da alimentação que as gerações passadas lhe ensinaram a usar. Por isso, era-lhe permitido sair do isolamento e da austeridade do Convento para ir ao campo procurar as coisas que a natureza dava, consoante a época do ano.
Traída pelas ervas escorregadias das pedras molhadas pelo orvalho da manhã, naquele dia escorregou e caiu por entre duas fragas de granito que a prenderam, e de onde se não conseguia soltar.
Com as forças que tinha, gritou a plenos pulmões na esperança de que naquele local deserto, existisse alguém que a ouvisse e a socorresse.
Lá em baixo, Fabio pescava nas águas do Douro, o peixe que havia de levar para o convento que ficava bem longe, do outro lado do rio.
Ao ouvir os gritos de aflição, não hesitou e atravessou para a outra margem, subindo as arribas por entre os arbustos, guiado pelo som dos apelos que o conduziram até Mariel
A custo conseguiu soltá-la das pedras que a prendiam, e abraçou-a com força para conseguir carregá-la mais para cima, até lugar seguro. Foi um momento mágico aquele em que pela primeira vez cada um pode sentir nesse abraço o calor arrepiante do corpo do outro.
A primeira vez vezes dois. Seres que se separaram com um sorriso e um brilho nos olhos, gravado para sempre nos seus corações.
Nas semanas seguintes, ambos regressavam secretamente aquele lugar, cada um na esperança de poder encontrar, ainda que fugazmente e à distância, ainda que fosse apenas ver, a imagem que marcou aquele encontro. Em vão.
Mas um dia aconteceu. Ao subir a uma fraga para tentarem alcançar mais largos horizontes, de repente e com surpresa, encontraram-se frente a frente. Os olhos cor de musgo novo cintilaram em frente a Fabio. Os dele cerraram-se incrédulos. Nem uma palavra. Não era preciso. Apenas um sorriso. Nenhum sabia o que dizer, mas num impulso estenderam os braços e seguraram as mãos do outro.
Foi um instante apenas. A trovoada que se desenhava no ar, descarregou sobre eles um raio naquele momento, petrificando os seus corpos.
Ainda hoje ali estão, frente a frente, a meio da escarpa rochosa, na margem esquerda do Douro. Dizem que ao amanhecer com nevoeiro, em Setembro, no sussurar da água do rio e no esvoaçar das folhas que o vento do fim do verão faz cair, se ouvem os segredos que silenciosamente trocam entre si.
Vêem-se quando se sobe o rio, segurando as mãos, e vêem-se os corpos aproximar-se lentamente até se unirem num abraço.
O abraço da paixão impossível que o pecado eternizou.
sexta-feira, 5 de junho de 2009
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